Abril indígena: mesmo com avanços, presença dos povos originários no ensino superior ainda é um desafio
Kayta Ayala (nome em português) ou Kwyikwwyire (na língua Jê) já era técnica de enfermagem e exercia a profissão quando, em 2014, viu os primeiros indígenas da etnia Gavião Kyikatejê ingressarem no curso de Saúde Coletiva da Unifesspa. Fazer uma universidade não estava nos planos de Kayta, mas a percepção da realidade e dos problemas que rodeavam seu povo a fez mudar de ideia. São justamente os desafios enfrentados pelos povos indígenas o tema de foco no mês de abril, concebido pelo movimento social indígena como o mês de luta e resistência dos povos originários.
No caso de Kayta, a atuação na área da saúde tornou-se prioridade. “Com o passar do tempo fui pesquisando sobre o curso [de Saúde Coletiva] e percebi que com ele posso ajudar minha comunidade. Sabemos que a [atenção à] saúde indígena é defasada e que mesmo assim temos que trabalhar com o que temos. Então, em 2016, fiz a prova e consegui entrar na Unifesspa”, conta a graduanda.
Kayta faz parte de um grupo de estudantes que vem crescendo a cada ano, contribuindo para a diversidade cultural e troca de saberes no ambiente universitário. Desde 2013, quase 200 indígenas ingressaram em cursos de graduação da Unifesspa, que realiza processo seletivo próprio para esses estudantes, com a reserva de duas vagas em cada curso de graduação.
Além disso, a Unifesspa tem implantado políticas internas para garantir e fortalecer a presença dos povos indígenas na Instituição, assim como ações voltadas à integração desses estudantes em todos os espaços de convivência da universidade. Criado em 2018, o Núcleo de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (Nuade), é exemplo dessa atuação, com a promoção de atividades e debates direcionados ao respeito e valorização a diversidade.
Para a coordenadora de Apoio à Diversidade Étnico-Racial do Nuade, profa. Maria Cristina Alencar, a presença dos povos indígenas na Universidade contribui para percebermos que o saber dito ocidental é limitado. “Os conhecimentos dos diferentes povos indígenas ajudam no questionamento dos limites da produção científica produzida até aqui e, também, nos apontam soluções, a partir de suas experiências e cosmovisões. Além disso, a presença indígena na Universidade é também estratégica para a afirmação cultural e política desses povos”, ressalta.
Nos planos de Kayta está o retorno do que a universidade a proporciona para sua comunidade e para os outros grupos indígenas com os quais puder contribuir. “O curso que faço é muito bom e abrange várias áreas. Com o passar do tempo, percebi que os professores entendem que temos culturas diferentes e, assim, passam a ter um olhar diferenciado em relação ao apoio dado a nós”.
Recentemente, como técnica de enfermagem, ela participou de um momento histórico ao vacinar, contra à Covid-19, os primeiros indígenas no Pará, na terra indígena Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins, a cerca de 79 quilômetros de Marabá, sede da Unifesspa.
Presença dos povos indígenas nas universidades
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos ao Censo 2010, apontam que 817 mil pessoas se autodeclaram indígenas no Brasil. O estado do Pará possui a sétima maior população indígena do país, com pouco mais 39 mil indígenas. Apesar de crescente, a participação desses povos no ensino superior ainda é tímida, representando 0,68% do total de estudantes matriculados em todo o país, de acordo com o censo da Educação 2017 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
“Ainda precisamos superar o racismo estrutural manifestado, muitas vezes, em expressões e na forma como tratamos os estudantes indígenas. Por exemplo, quando muitos se surpreendem com a presença deles na Universidade, como se aqui não fosse um lugar para eles. Temos ainda o desafio de superar a visão eurocêntrica que orienta a organização e funcionamento de muitas universidades”, frisa Maria Cristina Alencar.
Segundo a professora, é preciso superar o racismo para avançar na construção de uma universidade intercultural. “Estamos encravados no território de 13 diferentes povos indígenas que falam, pelo menos, nove diferentes línguas. Além de nos tornarmos uma universidade intercultural, também podemos nos construir uma Universidade Multilíngue”.
Isso porque, na avaliação da pesquisadora, o município de São Félix do Xingu, onde funciona o Instituto de Estudos do Xingu (IETU) da Unifesspa, tornou co-oficial a língua Mebengokré-Kayapó. “Esse campus tem tudo para se tornar o primeiro campus bilíngue numa universidade brasileira, onde a outra língua na qual a instituição funciona é uma língua autóctone e não uma língua estrangeira”, complementa.
Permanência dos estudantes também depende de apoio em várias frentes
Na Unifesspa, a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Estudantis (Proex) executa ações de apoio à permanência de estudantes indígenas por meio do Setor de Apoio às Políticas Afirmativas e Diversidade (SEAPAF), vinculado à Diretoria de Integração e Assistência Estudantil (DAIE). O Programa de Bolsa Permanência (PBP), criado no âmbito do Ministério da Educação (MEC) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), é uma das principais ações nesse sentido.
A Bolsa Permanência é um auxílio financeiro que tem por finalidade minimizar as desigualdades sociais, étnico-raciais e contribuir para permanência e diplomação dos estudantes de graduação em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Na Unifesspa, o PBP atende atualmente 71 discentes indígenas, além de discentes quilombolas, com uma bolsa paga mensalmente no valor de R$ 900 pelo FNDE/MEC.
“Além das atividades típicas do Programa de Bolsa Permanência, o SEAPAF participa de processos seletivos para ingressante público de políticas afirmativas e realiza o acompanhamento de vínculo e desempenho acadêmico dos bolsistas, a fim de conhecer as necessidades formativas dos estudantes, propor ações institucionais e intermediar o contato dos estudantes com outros órgãos para que tenham acesso a atendimento psicossociopedagógico”, explica o chefe do setor, Junior Gleysson da Cruz.
Mais sobre o Nuade
O Nuade mantém diálogo constante com os estudantes indígenas e sua organização, a Associação de Discentes Indígenas da Unifesspa (ADIU), apoiando-os em todas as ações que visem interculturalizar a Unifesspa. Também tem contribuído, desde o ano de 2019, com as ações da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação no Processo Seletivo Específico para ingresso de estudantes Indígenas e Quilombolas (PSIQ).
Desde a sua criação, o Nuade realiza cursos de Extensão e Seminários sobre a temática da presença indígena na região do Sul e Sudeste do Pará, provocando a reflexão sobre o processo de ocupação dessa região que resultou na redução dos territórios indígenas. O Núcleo também apoia ações de Pesquisa, Ensino e Extensão junto às comunidades indígenas da região, como os Gavião Akrãtikatêjê e Kyikatêjê, os Guarani-Mbyá, os Suruí-Aikewara, Parakanã, Xicrin do Cateté e Mebengokré-Kayapó.
Mais recentemente, tem contribuído no âmbito do Comitê Intersetorial da Prefeitura de Marabá para o acolhimento das famílias da etnia Warao refugiadas na cidade, apoiando de forma mais constante a construção da política municipal de inserção das crianças e jovens Warao na rede municipal de ensino.
Foto 1: Estudante indígena participa de campanha sobre respeito à diversidade. Banco de imagens da Unifesspa.
Foto 2: A técnica em enfermagem e aluna da Unifesspa, Kayta Ayala, participa da vacinação contra a Covid-19. Créditos: Bruno Cecim/Agência Pará
Foto 3: Indígenas durante evento na Unifesspa.
Foto 4: Mesa sobre Educação Escolar Indígena no II Simpósio de Educação e Inclusão Étnico-racial, promovida Instituto de Estudos do Xingu.
Redes Sociais