Racismo linguístico e a presença de Indígenas Gavião na universidade são tema de livro publicado por docente da Fecampo
Docente vinculada à Faculdade de Educação do Campo (Fecampo) da Unifesspa, a pesquisadora Flávia Marinho Lisbôa discute as diferentes nuances entre racismo e língua portuguesa, a partir da experiência dos indígenas Gavião no ambiente universitário.
Seu mais recente livro, “Racismo linguístico e os indígenas Gavião na universidade: língua como linha de força do dispositivo colonial”, é fruto da tese de doutorado da docente e foi publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba). Em sua investigação sobre a relação entre língua e poder, Lisbôa demonstra como hierarquias sociais e, portanto, formas de exclusão, são construídas e se mantêm por meio da língua. O livro físico está disponível para compra no site da Amazon. Baixe a versão digital gratuita em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/35896.
Na obra, a pesquisadora também reflete sobre a importância de políticas de ação afirmativa, como as de ingresso e permanência de diferentes grupos sociais nas universidades, como indígenas, quilombolas, LGBTQIAP+, entre outros, como uma das formas de combater o racismo e as desigualdades. Em entrevista concedida à Edufba, a pesquisadora traz mais detalhes sobre a obra, que será lançada oficialmente na Unifesspa no próximo dia 16 de fevereiro, às 15h, no auditório da Unidade 3, com a presença de lideranças indígenas que participaram da pesquisa. Além disso, ela aborda temáticas de racismo e preconceito linguístico. Confira:
Edufba: O seu livro “Racismo linguístico e os indígenas Gavião na universidade” reflete sobre a diversidade de sujeitos que têm conquistado acesso na universidade pública brasileira nos últimos anos e o papel da língua como uma potente linha de força da colonialidade. Poderia explicar para seus leitores e leitoras o que motivou esse objeto de pesquisa?
FML: Nos estudos linguísticos muito se falou sobre preconceito linguístico. Porém, ao analisar a presença indígena na universidade e as situações de desprestígio que sofrem por terem em sua oralidade diferenças marcadoras da “indianidade” que os constitui, não poderia pensar em outro termo para isso que não fosse “racismo linguístico”, pois sabemos que o racismo estrutural, fruto de nossa história colonial, relega aos povos indígenas e negros o lugar de feio, inferior, atrasado e outras classificações negativas em nossa sociedade, como manifestação de uma hierarquização racial entre essas pessoas e os corpos que carregam referências europeias, seja nos traços fenótipos, seja nos bens e valores socioculturais, como a língua. Demonstração disso é a valorização que nossa sociedade confere às línguas estrangeiras da Europa, e também norte-americana, e a desvalorização das, aproximadamente, 180 línguas indígenas nacionais. O tratamento díspare conferido às línguas orais e línguas com tradição escritas, como no caso das línguas indígenas e dos europeus, no nosso caso o português de Portugal, teve então papel preponderante no contato entre esses povos nesse território nomeado Brasil e as relações de dominação estabelecidas entre eles desde então. Assim é que chegamos hoje ao ponto no qual a língua do colonizador, a portuguesa, é assumida pela maioria dos brasileiros com orgulho em detrimento do apagamento das demais línguas e variações do próprio Português. Estabeleceu-se, então, um sentido político-ideológico para hierarquização de línguas/variedades linguísticas entre inferiores e superiores, de acordo com o prestígio social de seus falantes, situação problematizada por linguistas como Maurizio Gnerre.
Edufba: Poderia explicar mais detalhadamente de que forma a língua exerce esse papel de ser um instrumento de opressão?
FML: Quando aponto a desumanização dos indígenas e africanos no processo de colonização não me refiro apenas a esse tempo longínquo, mas também à atualidade, com atualização de novas e refinadas ferramentas de opressão colonial ao longo do tempo. Essa, como chamo no livro, “colonialidade linguística” fomenta a opressão na sociedade tanto (1) na negação de representatividade na língua à diversidade de existências que não cabem no padrão hegemônico que é masculino, branco, heteronormativo, cisgênero e classista; quanto (2) na operacionalização de uma variedade de prestígio da norma padrão da língua em espaços de poder que impede nesses sítios a circulação dessa diversidade de sujeitos socialmente marginalizados pelos recortes de classe, raça, gênero e sexualidade, por exemplo; e também (3) no não reconhecimento das línguas dos povos colonizadas, como é o caso das línguas indígenas. Com isso, proponho compreender os processos sociohistóricos e discursivos que tornam o código linguístico instrumento de exclusão numa sociedade movida pela colonialidade, numa troca mútua: a colonialidade precisa da língua para se materializar nas relações e práticas sociais, e a imposição da língua europeia, o português, em padrões protegidos e compartilhados entre uma elite foi a forma como a hegemonia, ao longo da história desse território, apagou e continua eliminando a possibilidade de circularem por espaços de prestígio (como a universidade) pessoas indígenas e negras, hierarquicamente racializadas na colonização. Essa barreira se dá pelas diversas razões sociais, econômicas e políticas que estabelecem os empecilhos para a parcela pobre da população (que em sua maioria é negra) acessar o código linguístico de prestígio, efetivando-se esse processo como mecanismo de dominação/segregação.
Edufba: Nos agradecimentos da obra, você menciona os alunos e lideranças Gavião Kyikatêjê, Akrãtikatêjê e Parkatêjê. De que forma essas pessoas colaboraram com a obra e como você avalia a presença deles no espaço universitário?
FML: Eles colaboraram no trabalho de campo na etapa da pesquisa e também acolheram a obra, reconhecendo sua importância para suas lutas em torno da língua, que nós sabemos tem implicações para toda existência e resistência indígena, pois é na/pela língua que as cosmologias, a forma de ver e existir no mundo, se processam. Por isso destaco sempre que o livro não fala de língua, apenas, ou da permanência indígena na universidade, apenas. Ao abordar essa temática que o livro traz estamos, na verdade, jogando luz sobre o genocídio em curso desde 1500 contra os povos originários (os quais vivem nesse território antes de ele ser chamado Brasil, é importante salientar) destacando a colonialidade estruturante que exclui esses sujeitos e a população negra de seus direitos. Nesse sentido, a presença dos Gavião na universidade, assim como outras sociedades indígenas, significa, na verdade, uma atualização dos modos de (re)existência dessas sociedades contra a histórica eliminação social, onde a língua tem papel central, tanto que ela foi sistematicamente enfocada pelos governos para efetivar a eliminação desses povos. A extrema violência que sofrem os indígenas no contexto amazônico potencializa a importância da instrumentalização acadêmica com a ampliação das formas de luta contra as injustiças que não tomam notoriedade pública, não alcançam visibilização midiática, tornando a Amazônia um contexto muito forte de racismo e de legitimação de práticas coloniais. Essas violências vão desde o não acesso à direitos básicos de saúde e educação, da poluição de seus territórios e rios, da invasão de suas florestas, da não demarcação de seus territórios, até o estupro de suas mulheres e crianças e assassinatos. Evidencio o racismo linguístico no contexto acadêmico como uma violência à cosmologia desses povos, sendo uma expressão do racismo estrutural, que se manifesta principalmente em tensões que envolve de fato a eliminação física.
Edufba: Diante do cenário de ataques às minorias sociais e de desmantelamento das universidades públicas, na sua opinião, qual seria a importância de uma obra como “Racismo linguístico e os indígenas Gavião na universidade”?
FML: A atualidade dos acontecimentos históricos evidencia novas posturas e rupturas sociais e acadêmicas, tensionadas pela problematização das normalidades tradicionalmente aceitas em torno de gênero, raça, classe e sexualidade, por exemplo. A língua é um dos enfoques também contemplados nessas abordagens, que questionam reproduções de gênero bem como raciais na linguagem e é justamente essa reflexão que o livro provoca. Em alguma medida, uma tese defendida com essa temática, já que foi o doutoramento que resultou no livro, sinaliza a consolidação científica e institucional de percepções epistemológicas decoloniais, logo o reconhecimento do espaço acadêmico como marcadamente racista, colonial e patriarcal, como um microcosmo da sociedade como um todo. A recente (falamos de aproximadamente 20 anos) entrada na universidade de grupos historicamente desprestigiados no Brasil, empurra para o limite as necessidades de transformações do âmbito acadêmico, como sempre foi reivindicado ao longo da história na sociedade de forma geral. A entrada desses grupos na universidade não está desgarrada de práticas insurgentes na sociedade como um todo, mobilizadas e materializadas na circulação com maior força de discursos não-hegemônicos, especialmente pelas possibilidades alternativas de comunicação que a Internet tem possibilitado nos últimos anos. Esse livro, então, é um dos fios desse tecido que tem asfixiado preceitos hegemônicos que sustentam as opressões raciais na sociedade brasileira. O livro é fruto desse momento histórico que estamos vivendo na sociedade como um todo e aponta que a universidade, como instituição que reproduz as relações sociais brasileiras, também sente frontalmente esses tensionamentos.
Edufba: Finalizando a nossa entrevista, que mensagem gostaria de deixar para os seus leitores e leitoras?
FML: Principalmente, agradeço a generosidade de quem se lançar nesse diálogo comigo ao ler o livro, pois sabemos que o mercado editorial disputa ferrenhamente a atenção dos leitores e ser lida numa sociedade como a nossa é um enorme privilégio, considerando as diversas ordens que dificultam as possibilidades de leitura. Com o livro espero reforçar princípios para transformação social desse lugar de onde falo/atuo, que é o da língua/linguagem, por outro lado, reforço, não entendam essa demarcação como uma limitação de área ou discussão, considerando a característica imanente à língua de permear toda a nossa existência. Nesse entendimento é que tomo a língua como um fio que costura diversos fatores de ordem social, permeando interesses diversos, seja da nossa história, da nossa cultura, da nossa estrutura como sociedade, ou mesmo das nossas subjetividades individuais, desde que pensemos tudo isso sob o viés colonial, onde a língua/linguagem tem papel fundamental. E a partir desse conjunto de fatores se evidencia na nossa discussão a necessidade de ampliar nas universidades públicas, e em outros espaços de poder, a presença de pessoas pretas, indígenas e LGBTQIAPN+. Há muito o que ser feito ainda, mas os avanços que aconteceram foram históricos e isso só foi possível porque tivemos políticas públicas no sentido de tentar minorar essas desigualdades. Sob a pressão dos movimentos sociais, o poder público precisou reconhecer a existência desses problemas, precisou reconhecer que o racismo é estrutural em nossa sociedade e que necessitaria construir legislações para isso, como a lei de cotas, por exemplo. Nesses últimos anos esse reconhecimento governamental não existiu. Ao contrário, toda reivindicação por igualdade foi ferozmente atacada, demonstrando que cada direito antirracista alcançado precisa ser atentamente vigiado e protegido.
*Entrevista reproduzida do site da Edufba
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