110 anos: És cidade relicária, Marabá
por Jerônimo da Silva e Silva e Hiran de Moura Possas
Em cinco de abril, a viçosa Marabá do seu hino completou 110 anos. Novas comemorações virão em profusão. Certamente, Francisco Coelho da Silva, sargento de organização paramilitar e comerciante controverso, será nostalgicamente e convenientemente relembrado, assegurando segurança e a estabilidade históricas ao passado perfeito “da mais pura e vicejante seara de riqueza”.
Sabe-se, entretanto, que a memória é seletiva, tendo o poder de escolher, inconscientemente ou não, o que lembrar e o que esquecer. Não por acaso, a palavra Marabá carrega consigo, justamente, certo jogo de significação, aqui, brevemente explicitado. Marabá [Marabá/Mayr-abá], de procedência indígena, significa, em tradução livre “filho da mistura, mestiço” ou em versão mais disseminada “filho do estrangeiro com a índia”. O médico partícipe da Comissão Rondon, Gastão Cruls [1888-1959] nos dirá que Marabá seria o “indesejável na tribo”, aquele que, embora esteja na “tribo”, não é aceito ou reconhecido por esta, um tipo de estrangeiro indesejável.
O poema Marabá [1851], de Gonçaves Dias, que teria inspirado Francisco Coelho, nos revela melancolicamente a condição de Marabá, filha da relação do “branco” com a “índia”, rejeitada pelos dois mundos, em estado perpétuo de exclusão. Embora não se saiba os motivos da afinidade de Francisco Coelho com o referido poema, é importante destacar que as comemorações ditas oficiais do aniversário da cidade no decorrer destes 110 anos, ressaltam e reconstroem uma memória da “união do branco com a indígena” de forma pacífica, benéfica, fruto bendito, cujo resultado não poderia ser outro, a não ser o progresso.
Essa leitura, digamos, “positiva” da denominação da cidade, desejada e exaltada por alguns, tenta convocar a seu favor a história dos inúmeros recursos explorados na região, tais como o extrativismo da castanha, do caucho, da mineração, bem como do latifúndio e a expansão comercial, um resultado ancestral do progresso desde Francisco Coelho. Esta memória centrada no extrativismo e nos grandes projetos econômicos silencia, invisibiliza, por exemplo, o custo de vidas humanas ceifadas no decorrer da história da cidade: ribeirinhos, indígenas, camponeses, trabalhadores urbanos, vítimas de uma proposta de progresso e desenvolvimento voltada mais para o lucro, e menos para a construção de condições dignas de sobrevivência da diversidade do seu povo.
Marabá faz jus, em várias situações, ao seu sentido etimológico, pois retira do esquecimento e desvela a cidade como uma filha enjeitada, cuja maioria dos seus moradores são estrangeiros em sua própria terra, estranhamente excluídos, indesejados, posto que a promessa de progresso/dignidade humana não se materializou.
Mas, nem tudo está perdido. Como se sabe, a palavra “comemorar” significa, “lembrar junto”, quer dizer, o ato de comemorar seria uma tarefa coletiva e, enquanto tal, possibilitaria a existência de memórias contraditórias. Não seria significativo que a construção desta data comemorativa seja fundamentada no reconhecimento da violência diária praticada contra os excluídos? Seria uma oportunidade de, ao repensar a Marabá de Gonçalves Dias e de Francisco Coelho, digamos assim, seja possível construir outra Marabá, mais inclusiva, solidária e, portanto disposta a neutralizar as formas de exclusão que tragicamente constituíram e ainda constituem “a filha do estrangeiro com a índia”. Cabe a todos nós, sem exceções, reescrevermos a melhor tradução para as gerações vindouras!
Autores:
Hiran de Moura Possas: Professor Adjunto da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Doutor em Comunicação e Semiótica.
Jerônimo da Silva e Silva: Antropólogo. Docente na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.
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