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Curso de Direito para filhos de sem-terra busca justiça mais cidadã

Publicado: Terça, 24 de Novembro de 2015, 10h13 | Última atualização em Segunda, 13 de Fevereiro de 2017, 16h12 | Acessos: 6344

 

Veículo: Marabá Notícias on line 

Editoria: Geral Tipo: Matéria  

Data:

Assunto: Unifesspa 

 

direito assentados maraba

A assinatura do termo que formaliza a criação do curso especial de bacharelado em Direito para beneficiários da reforma agrária, no último dia 19, pode ser considerada mais uma etapa no longo processo que visa ampliar o acesso a determinadas graduações que historicamente atendem a um público muito restrito, notadamente de alto poder aquisitivo.

Denominado de “Direito da Terra”, o curso absorve alunos provenientes de famílias assentadas, devidamente cadastradas e reconhecidas pelo Incra, por meio de declaração, e submetidas ao processo de seleção da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), em Marabá.

O curso é fruto de acordo formalizado entre a Unifesspa e o Incra, por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), e já ocorre em outros Estados, como o curso de Direito do Pronera na Universidade Federal de Goiás (UFG), na Universidade Estadual de Feira de Santana na Bahia (UEFS) e, mais recentemente, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), além de dezenas de outros cursos em diversas áreas, ofertados em parceria com universidades públicas brasileiras.

Em Marabá, o curso objetiva formar 50 profissionais, originários de famílias beneficiadas pelo Programa Nacional de Reforma Agrária. Ao concluir o curso, o egresso receberá o diploma de bacharel em Direito. Os componentes curriculares serão distribuídos em dez semestres, perfazendo um total de cinco anos.

Embora tenha formado revolucionários como Joaquim Nabuco, a Faculdade de Direito, criada em 1827, era pilar fundamental do Império. O curso se destinava a formar governantes e administradores públicos capazes de estruturar e conduzir o país recém-emancipado, todavia sob a ótica escravagista e essencialmente aristocrática, de modo que o acesso de pobres era completamente impensado.

Mas algumas políticas recentes começaram a expandir o acesso a cursos que antes eram inatingíveis, como é o caso das cotas, e agora com cursos que atendem especificamente filhos de trabalhadores rurais sem-terra.

A construção deste curso aconteceu no decorrer de reuniões periódicas entre professores, alunos, técnicos em assuntos educacionais e representantes dos movimentos sociais do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá, como uma resposta às novas demandas sociais dos movimentos campesinos do Sul e Sudeste do Pará.

Coordenador vislumbra uma Justiça mais cidadã

Militando pela criação do curso de Direito da Terra, está o professor doutor Jorge Luís Ribeiro dos Santos, diretor do Instituto de Educação, Direito e Sociedade (IEDS/Unifesspa), que será o coordenador do novo curso. Para ele, a criação dessa graduação é de suma importância, por ser instalada numa região de conflitos e mortes provocadas por causa da luta pela terra. “Esse curso faz parte de um conjunto de ações afirmativas do governo federal; nada mais justo do que o filho dos camponeses se apropriar das ferramentas jurídicas”, afirma.

Ainda segundo ele, a Unifesspa/UFPA tem experiência de mais de 10 anos atuando com graduações destinadas a populações do campo, formando profissionais em Letras, Agronomia e Pedagogia. E a expectativa agora é de que no segundo semestre do ano que vem os primeiros 50 acadêmicos de Direito estejam em sala de aula.

Jorge Luís diz ter esperança de que o egresso do curso seja um pilar de defesa dos trabalhadores em questões rurais, previdenciárias, criminais e cíveis. Trata-se de uma população historicamente discriminada no que diz respeito às oportunidades, primeiro pela distância física da orça para a cidade, onde estão as universidades, e principalmente pela invisibilidade social dos camponeses.

Nesse particular, Jorge Luís cita a experiência de Goiás, onde grande parte dos novos bacharéis em Direito deram retorno muito satisfatório à sociedade, desenvolvendo ações voltadas para o segmento dos camponeses. Ou seja: atuando noutra perspectiva do Direito, como a defesa dos direitos humanos. “Não é uma mera turma de Direito, buscamos uma perspectiva cidadã”, resume o coordenador do novo curso.

No último dia 19 foi assinado o Termo de Descentralização Orçamentária, que legaliza o repasse de recursos do Incra direto para custeio da universidade para bancar o curso durante cinco anos.

Intelectuais veem medida como inovadora e revolucionária

O renomado juiz do Trabalho, Jonatas Andrade, que desempenha atividade singular no combate ao trabalho escravo na região, entende que a criação do curso de “Direito da Terra” é uma política afirmativa adicional de democratização do ensino superior no Brasil, “notoriamente reservado à classe media-alta, majoritariamente branca”.

“Ademais, o Direito funciona como instrumento de manutenção do poder e do status quo, razão pela qual sua permeabilidade a outros espectros sociais se torna necessária para minimizar a nossa vergonhosa desigualdade social”, analisa o magistrado.

“É mais um importante passo no processo de democratização do acesso ao ensino superior”. Quem afirma é o professor Cássio Augusto Guilherme, coordenador do curso de História da Unifesspa.

Ele observa que durante séculos, apenas os filhos dos fazendeiros e latifundiários se tornavam advogados, delegados, promotores e juízes de Direito, que muitas vezes decidiam causas agrárias e trabalhistas. “Agora também os filhos dos assentados atuarão no judiciário. Ótimo para democratizar também a Justiça brasileira. Mas é claro que as classes até então privilegiadas reagirão contra o curso”, adverte.

Por sua vez, a socióloga Etiane Patrícia Reis acredita que se trata do começo de uma transformação radical nos paradigmas do Direito. “A possibilidade de camponeses e seus filhos cursarem Direito, pode reacender as possibilidades de mudanças estruturais no que diz respeito também ao perfil do formado e nos seus comprometimentos”, observa Etiane.

Enfática, ela alfineta: “Talvez eles (os novos bacharéis) não usem o discurso de que não existe trabalho escravo na região. Teremos camponeses com a missão de ser juízes de Direito. Já pensou? Isso é revolucionário”.

Já o cientista social Marcelo Melo dos Santos diz acreditar que o curso de “Direito da Terra” vem em bom momento. Ainda segundo ele, a nova graduação é fruto de uma reivindicação histórica dos movimentos sociais da região.

“O curso é importante na medida em que deve criar oportunidades para formar os filhos de trabalhadores do campo que têm vontade de estudar e até então não tiveram oportunidade. A inserção destes trabalhadores nos cursos de Direito deve promover a formação de sujeitos mais diversos, já que o curso de Direito em Marabá, por uma serie de fatores, é ocupado por pessoas que são, na maioria, da classe média”, argumenta.

Curso ajuda a construir a Justiça, diz doutorando

“A Justiça nesse país sempre funcionou ao contrário do que deveria, talvez mesmo pudéssemos defini-la pela palavra privilégio, uma vez que ‘privi’ vem de ‘privus’, que significa privar e ‘légio’ vem de ‘lex’, que quer dizer lei, ou seja, em nosso país, na maioria das vezes, a aplicação da lei é um processo de privar a maioria para que uma minoria possa ganhar”.

A afirmação é do geógrafo Bruno Malheiro, professor da Unifesspa, mas que atualmente cursa Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo ele, no campo do Direito Agrário essa situação é gritante. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1985 e 2014, foram registrados 1.723 assassinatos, sendo que somente 108 desses casos foram levados a julgamento e pouco mais de 80 pessoas condenadas, com nenhum mandante na cadeia. “Temos claramente a aplicação da lei em benefício de alguns. Parece ter algo errado aí!”, obnserva.

Além disso, continua ele, os privilegiados que concentram a riqueza e a terra querem que acreditemos que a luta pela distribuição da riqueza e pela função social da propriedade é um crime, pois eu me reservo o direito de pensar ao contrário disso e vejo que a Universidade, ao abrir um curso de Direito para camponeses está, na verdade, contribuindo para a construção da Justiça. Isso mesmo, justiça tem a ver com a luta contra o privilégio, por um mundo em que vários mundos possam conviver.

“Atacar o privilégio é dar instrumentos para que aqueles que sempre foram privados de ter direitos possam lutar para consegui-lo. Lógico que isso será visto pelos detentores dos privilégios como uma afronta, se assim o for realmente a Universidade estará cumprindo seu papel público”, argumenta Bruno Malheiro.

 

(Chagas Filho)

 

 

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